Quando ouvimos a palavra “salvação”, a tendência imediata é relegá-la ao universo religioso. Imaginamos dogmas, pecados, graças, infernos. Mas será possível falar de salvação sem se apoiar em uma teologia? Seria possível uma soteriologia filosófica, isto é, uma doutrina da salvação que não invoque deuses nem milagres, mas que, ao contrário, seja acessível ao espírito racional moderno?
É exatamente esse o território onde Luc Ferry, filósofo francês contemporâneo, instala sua reflexão. Em livros como Aprender a viver e O homem-Deus, Ferry busca responder a uma pergunta que atravessa todas as épocas e culturas: o que nos salva? O que, afinal, pode dar sentido e valor à vida humana, sabendo que ela é finita e marcada pela perda?
Luc Ferry não se propõe a substituir a religião pela filosofia. Tampouco adota um ateísmo beligerante como o de certos materialistas contemporâneos. O que ele propõe é outra via: uma filosofia que, sem negar as grandes tradições religiosas, oferece também uma resposta plausível e consistente à questão da salvação.
Para compreender o que está em jogo, é preciso dar nome ao problema. O ser humano, diz Ferry, é o único animal que sabe que vai morrer. Ele não apenas morre, como todos os seres vivos, mas vive com a consciência da morte. Isso o torna capaz de se projetar no futuro, de desejar, de amar, mas também de sofrer. E o sofrimento mais fundamental, segundo Ferry, é o da perda.
Nós sofremos não só por medo da nossa própria morte, mas, mais ainda, pela morte daqueles que amamos. A verdadeira angústia humana não é tanto o medo do fim pessoal, mas o pavor de que o amor seja, em última instância, impotente. A grande pergunta da soteriologia filosófica moderna, então, é esta: existe alguma maneira de salvar aquilo que amamos do desaparecimento total?
Na Antiguidade, os gregos tinham uma resposta clara. Para eles, o que salva é o logos, a razão. Através da filosofia, o homem pode elevar-se do mundo sensível, mutável e enganoso ao mundo das ideias, eterno e inteligível. Platão afirmava que a alma, ao filosofar, se prepara para a morte. Isso não é um gesto mórbido, mas um exercício de liberdade: a alma, ao se libertar do apego às aparências, reencontra sua natureza imortal. A salvação, aqui, consiste em sair da caverna da ignorância e contemplar o real em sua verdade.
Luc Ferry reconhece a grandeza dessa proposta platônica, mas a considera limitada para o mundo moderno. Em primeiro lugar, porque a ideia de um mundo eterno e estável das essências já não se sustenta diante da ciência contemporânea. Em segundo, porque o homem moderno não busca apenas a verdade: ele quer amar e ser amado. A salvação moderna não pode prescindir do afeto.
E é por isso que o cristianismo, diz Ferry, trouxe uma revolução soteriológica. Ao afirmar que Deus se fez homem por amor, e que o amor é mais forte que a morte, o cristianismo ofereceu uma nova esperança. A salvação já não dependia do saber filosófico nem da virtude cívica, mas da adesão a um amor absoluto, encarnado. O indivíduo tornou-se, pela primeira vez, infinito em dignidade, não porque fosse sábio ou poderoso, mas porque era amado por Deus.
Ferry vê nisso um progresso imenso na consciência humana. A subjetividade adquire uma centralidade inédita. O cristianismo inaugura a ideia de pessoa como um valor absoluto, insubstituível, inviolável. No entanto, mesmo reconhecendo a força dessa revolução religiosa, Ferry busca ainda uma resposta filosófica que dispense a fé teológica.
É nesse ponto que entra sua tentativa mais ousada: mostrar que a filosofia pode, por vias próprias, oferecer um tipo de salvação que, se não iguala, pelo menos se aproxima daquela prometida pelas religiões. Mas como seria isso possível?
A proposta de Ferry parte da ideia de que não é a imortalidade da alma que nos salva, mas a continuidade do amor. A salvação filosófica, para ele, consiste em encontrar um sentido durável para a vida, mesmo na presença da morte. E esse sentido nasce da transcendência não religiosa, mas existencial: amar alguém de modo tão profundo que a vida deixa de ter o eu como centro.
Nesse sentido, educar um filho, construir uma obra, dedicar-se a uma causa justa, tudo isso são formas de transcendência. Elas nos tiram do imediato e nos lançam num tempo que não se mede em dias, mas em significados. Quando amamos, aceitamos perder algo de nós mesmos. E é nesse gesto, paradoxalmente, que somos salvos da esterilidade do ego.
Ferry fala, então, de uma “salvação sem Deus”, que se baseia não em crenças metafísicas, mas em experiências vividas. Essa salvação é modesta, no sentido de que não promete uma vida eterna, nem a ressurreição do corpo. Mas é profunda, porque reconhece que a única eternidade a que temos acesso talvez seja a memória amorosa que deixamos no coração dos outros.
Essa concepção da salvação filosófica não é cética nem desencantada. Ao contrário, ela exige um grau alto de presença, de lucidez e de entrega. Para Ferry, o que nos salva não é escapar da morte, mas dar à vida um sentido tal que ela possa ser assumida até o fim, sem ressentimento. E isso exige filosofia, isto é, uma arte de viver que saiba conciliar a finitude com a dignidade.
Ser salvo, então, não é ser poupado da morte, mas ser capaz de dizer: minha vida valeu a pena. Essa declaração, se verdadeira, é o selo de uma existência bem vivida. E, se é possível chegar a ela sem fé religiosa, mas com coragem, inteligência e amor, então a filosofia terá cumprido sua promessa mais antiga: ajudar os homens a viver e a morrer melhor.
Luc Ferry não rejeita as religiões, nem disputa com elas o monopólio da salvação. O que ele propõe é um espaço intermediário, onde o pensamento e a experiência possam caminhar juntos. E nesse espaço, talvez muitos encontrem uma forma de salvação que não depende de dogmas, mas de escolhas conscientes e afetos verdadeiros.
Em um mundo marcado por crises de sentido, por cinismo e superficialidade, a soteriologia filosófica de Ferry soa como um convite: aprender a viver é também aprender a amar, e aprender a amar é aprender a morrer, não no desespero, mas na esperança serena de que o bem que fizemos não morrerá conosco.