A maioria dos homens vive e morre sem jamais ter conhecido a própria força. Não porque lhes falte talento, sorte ou oportunidade, mas porque lhes falta garra. E não me refiro aqui à mera resistência mecânica, ao sobreviver rotineiro dos que aguentam por aguentar, como as máquinas continuam ligadas por defeito de fábrica. Falo daquela força íntima, invisível aos olhos, mas visível nos feitos, que une paixão duradoura e esforço contínuo, mesmo diante da derrota certa.
Angela Duckworth, psicóloga americana e autora do livro GARRA: O poder da paixão e da perseverança, captou esse fenômeno com precisão rara em tempos onde o êxito imediato é confundido com virtude. Sua tese é simples, mas subversiva: o que leva alguém ao topo não é o quociente de inteligência, nem o carisma, nem sequer as credenciais formais. É a garra, definida como uma combinação de interesse profundo, vocação e uma capacidade de resistir ao tempo, ao fracasso e à dor. A paixão de longo prazo unida a uma ética inflexível de trabalho.
Essa tese choca porque colide com o imaginário moderno, onde o sucesso é fruto de sorte ou de alguma fórmula secreta revelada por “gurus”. Duckworth contrapõe a esse delírio a realidade crua: o sucesso real, verdadeiro, orgânico, é uma obra de longa paciência. É preciso amar algo com força o bastante para persegui-lo por anos, talvez por décadas, talvez sem nunca colher os frutos. É amar mais o caminho do que a recompensa. Isso é garra.
Mas Duckworth, como toda cientista social moderna, tende a reduzir esse fenômeno a variáveis psicológicas mensuráveis. Ela nos ajuda a diagnosticar o problema, mas não penetra até o âmago da questão. Pois o que é, afinal, essa chama que move um homem por décadas, mesmo diante do escárnio e da indiferença do mundo? É só um traço de personalidade? Uma configuração neurológica vantajosa?
Mas talvez os exemplos falem mais alto que os conceitos.
Considere a história de Huang Dafa, um agricultor chinês da província de Guizhou. Um homem sem educação formal, sem influência, sem recursos. Sua aldeia, isolada nas montanhas, sofria há séculos com a falta de água. O governo ignorava seus pedidos. Os engenheiros diziam que era impossível. Então Huang decidiu cavar ele mesmo um canal de irrigação. Esculpir a pedra com as próprias mãos. Literalmente.
Foram mais de 30 anos de trabalho. Um canal de 10 km, escavado manualmente entre desfiladeiros e penhascos. Perdeu amigos, enfrentou zombarias, suportou o abandono. Mas não desistiu. Quando, já com mais de 80 anos, o canal finalmente levou água à vila, Huang Dafa foi comparado ao lendário Yu, o Grande, o engenheiro-mítico da China Antiga. Não por acaso. O que ele fez não foi engenharia. Foi heroísmo silencioso.
Esse é o rosto verdadeiro da garra. Não é aquele do empreendedorzinho que posta fotos com frases motivacionais. É o do velho camponês que cava pedras por três décadas porque acredita que sua aldeia merece viver. A paixão dele não era pela técnica, mas pela vida. Sua perseverança não se fundava na expectativa de lucro, mas na certeza de que um bem comum valia o sacrifício.
Há outros nomes, menos obscuros, que ilustram esse mesmo princípio. Thomas Edison testou mais de mil materiais antes de encontrar o filamento correto para a lâmpada elétrica. Quando perguntado sobre seus fracassos, respondeu: “Não falhei mil vezes. Encontrei mil maneiras que não funcionam.” Não era arrogância. Era clareza. O sucesso não está no ponto de chegada, mas na solidez do caminho percorrido.
Ou pensemos em Nelson Mandela. Vinte e sete anos na prisão. Perseguido, censurado, esquecido. Ao sair, não buscou vingança, mas reconciliação. Por quê? Porque não lutava por si mesmo, mas por um ideal, a dignidade humana encarnada em sua pátria. Vinte e sete anos é tempo demais para um ressentido manter a pose. Só alguém com uma paixão autêntica pela justiça é capaz de atravessar tanto tempo de sombra sem se corromper.
Essa é a diferença entre paixão verdadeira e entusiasmo passageiro. O entusiasta se lança com força, mas logo se esgota. O apaixonado permanece, mesmo quando a recompensa desaparece. Perseverança, dizia Churchill, é “seguir adiante mesmo quando se está em pleno inferno”. Não por masoquismo, mas por amor à causa.
Mas há hoje um desafio silencioso que exige garra e quase ninguém o enxerga como tal: o desafio das pessoas idosas diante das tecnologias digitais. Para alguém nascido antes da década de 70, os dispositivos modernos, as redes sociais, os sistemas em nuvem, os aplicativos bancários e os algoritmos podem parecer quase alienígenas. Aprender essas ferramentas exige um esforço imenso, não apenas cognitivo, mas emocional. É preciso vencer o medo, a sensação de inadequação, a vergonha de errar. Mas quem não se adapta fica para trás. A velocidade das mudanças tecnológicas aumenta a cada ano, e o abismo entre gerações se aprofunda. Só quem tiver garra e perseverança conseguirá acompanhar. Aprender a lidar com o mundo digital hoje, para um idoso, é como aprender uma nova língua depois dos sessenta. É tarefa dura, mas vital. Não é só uma questão de conforto ou entretenimento. Trata-se de sobrevivência cultural. De autonomia. De dignidade. E de permanecer inserido no mundo, ao invés de ser empurrado para a margem.
Em nosso tempo, dominado pelo imediatismo e pela infantilização das expectativas, o elogio à garra soa quase ofensivo. Espera-se que tudo venha rápido, sem dor, com garantias. Quer-se o diploma, mas não o estudo; a fama, mas não o trabalho; o sucesso, mas não o fracasso prévio. E assim gera-se uma legião de frágeis, brilhantes talvez, mas vazios. Gente que brilha por alguns anos e depois apaga-se como uma vela ao vento.
A cultura da garra, ao contrário, é uma cultura de longo prazo. Ela exige a formação de um caráter, algo que se constrói dia após dia, com escolhas pequenas e constantes. Não há atalho. Não há truque. Só o tempo, o esforço e a fidelidade a uma paixão verdadeira.
Nesse sentido, todo homem que persevera com honestidade se torna um herói trágico. Pois ele aceita a possibilidade do fracasso final e mesmo assim continua. Ele sabe que pode perder, mas joga o jogo até o fim. Isso não é otimismo. É coragem.
Para concluir, volto ao ponto inicial. O que é, então, a garra humana? Não é força bruta, nem apenas paciência. É uma aliança interior entre amor e dever. É quando a paixão por algo se torna tão profunda que a perseverança não é mais uma escolha, é uma obrigação moral. É quando desistir significaria trair a própria alma.
Duckworth nos oferece uma definição útil. Mas a filosofia, a literatura e a história nos oferecem os exemplos vivos. De Huang Dafa a Mandela, de Edison a Beethoven, todos esses homens revelam a mesma verdade: que a paixão verdadeira, quando aliada à perseverança, é uma força quase invencível. Não porque garante o sucesso, mas porque transforma quem a cultiva em alguém digno da vitória, mesmo que ela nunca venha.
E isso, no fim das contas, é o mais importante. A garra não é sobre vencer. É sobre merecer vencer!