A diferença de poder entre os membros da espécie humana

Se tomarmos o mundo animal como ponto de partida, veremos que as diferenças de força, astúcia e domínio entre indivíduos de uma mesma espécie raramente ultrapassam limites razoáveis. Um lobo pode ser mais esperto que outro, um elefante pode ser mais forte, um pavão pode exibir uma cauda mais exuberante. Mas nenhum deles pode, sozinho, subjugar toda a sua espécie. Um leão, por mais que domine sua alcateia, jamais poderá decidir, do alto de uma pedra, que dezenas de milhares de outros leões devem ser exterminados para garantir a paz e a ordem de seu território. Entre os homens, essa aberração é não apenas possível, como já aconteceu algumas vezes.

O animal humano é, por essência, o portador de uma desproporção ontológica de poder. E essa desproporção, ao contrário do que se espera da evolução biológica, não tem diminuído com o tempo. Ao contrário, ela se avoluma em ritmo exponencial. Nunca a distância de poder entre um indivíduo e a média dos demais foi tão grande quanto foi no século XX. E tudo indica que no século XXI essa tendência não só continuará, como será levada ao paroxismo.

A tipologia de Aristóteles

A explicação disso começa onde a zoologia termina: na alma humana. Aristóteles, ao estudar a tragédia e o drama humano, classificava os personagens em cinco tipos: o deus, o semideus, o herói, o homem comum e o incapaz. O deus é a encarnação do poder absoluto, do domínio integral sobre a realidade. O semideus é aquele que possui origem superior, mas ainda está sujeito às limitações do mundo. O herói é o que enfrenta o destino com coragem, que sofre, resiste e transforma. O homem comum é a maioria, aquele que vive sem grandes alturas nem profundidades, que se adapta, que sobrevive. E por fim, o incapaz, que mal possui consciência das forças que o arrastam e que não sabe discernir seu próprio papel na existência.

Essa estrutura clássica não apenas serve ao teatro, mas também descreve com assustadora precisão a ordem social moderna. O que se observa é uma hipertrofia dos extremos. Os deuses e os incapazes se multiplicam, enquanto os heróis desaparecem. Os homens comuns perdem terreno para os idiotas funcionais. E os semideuses se transfiguram em tecnocratas, gurus de tecnologia e donos de algoritmos.

O século das aberrações

Stalin não era um deus, nem um herói, nem um semideus. Era, a rigor, um homem comum com traços de psicopata, mas que, pelas engrenagens históricas e pelo poder institucional, foi alçado à condição de divindade política. O mesmo vale para Hitler e Mao. Nenhum dos três possuía sabedoria, grandeza moral ou superioridade espiritual. Eram, antes de tudo, mestres da manipulação perversa. Seus instrumentos foram a habilidade de manipular as massas e capacidade de doutrina-la politicamente.

Eles não apenas comandaram exércitos, mas manipularam consciências, redesenharam fronteiras, criaram mitologias políticas e decidiram, com uma canetada, o destino de milhões. Foram apoiados por uma multidão de incapazes. E assim, a maior diferença de poder da história humana se realizou. Um homem e um exército de burocratas pôde matar milhões com a frieza de quem ajusta uma conta de planilha.

Milhões de pessoas submissas a um único homem

Essa diferença de poder se torna mais escandalosa quando se percebe que, ao contrário do que muitos pensam, ela não depende somente da suposta genialidade do líder.Depende da submissão das massas. O herói desapareceu não porque foi derrotado, mas porque foi esquecido. Sua função, que era resistir à ordem imposta, pensar com a própria cabeça, lutar com coragem contra o destino ou contra os tiranos, foi transferida ao funcionário eficiente, ao técnico obediente, ao professor que não educa.

Hoje, vivemos sob o império da técnica. Os que detêm o saber tecnológico e, sobretudo, o poder sobre os fluxos de informação, estão cada vez mais próximos da figura aristotélica do deus. Mas não um deus metafísico, transcendente, e sim um deus cibernético, que tudo vê, tudo armazena, tudo calcula. Um executivo do Vale do Silício tem mais controle sobre a vida das pessoas comuns do que qualquer monarca teve sobre seus súditos. E o mais inquietante: ele não precisa gritar ordens, não precisa marchar com tanques. Basta alterar algoritmos, censurar discretamente, mudar critérios de recomendação. Seu poder é invisível e, por isso mesmo, quase absoluto.

O novo Olimpo

Não é exagero afirmar que o Olimpo está sendo reconstruído. Não com colunas de mármore ou trovões, mas com satélites, redes neurais e supercomputadores. O novo deus não lança raios, lança atualizações. O novo herói não enfrenta monstros mitológicos, mas sim bugs, falhas de sistema e crises de segurança digital. E o novo incapaz já não é o camponês iletrado, mas o jovem hiperconectado, que acha que é livre porque pode escolher entre dois aplicativos idênticos, sem perceber que cada clique seu alimenta uma engrenagem que ele não compreende.

A distância de poder entre um programador-chefe da OpenAI ou da Alphabet e um adolescente médio do Brasil profundo é maior do que a que existia entre um imperador romano e um escravo do campo. O imperador, ao menos, precisava da presença física, do gesto, do decreto. O novo soberano nem precisa aparecer. Seu domínio é sistêmico, automatizado, onipresente.

E o mais trágico é que a maioria das pessoas nem sequer percebe que essa diferença existe. Acham que são livres, que têm voz, que são importantes. Mas vivem num teatro de sombras, como os prisioneiros da caverna de Platão, encantados pelas imagens que lhes são projetadas, incapazes de virar o rosto e ver quem acende o fogo por trás da cortina.

O essencial em poucas linhas

O ser humano é o único animal capaz de transformar-se, em poucas gerações: pode passar de herói a incapaz ou de incapaz a herói. Essa transmutação, como mostrou Aristóteles, está no cerne da tragédia. Mas o que antes era uma peça encenada em anfiteatros, tornou-se uma mecânica histórica e tecnológica. A diferença de poder entre indivíduos não é apenas um dado sociológico, é uma deformação ontológica da nossa espécie. E tudo indica que, quanto mais dominamos as forças da natureza, menos controlamos as forças da alma. O século XX foi o laboratório desse abismo. O século XXI será sua consagração ou sua ruína!

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